terça-feira, 30 de março de 2010

Amigos que gostam de pensar...

Profeta da cristandade

Ernesto Martins

Neste período de Quaresma, em que uma lenda de morte e ressurreição de um judeu do sec. I volta a ser alvo de atenções redobradas, não deixa de ser oportuno recordar o que sabemos hoje acerca da personagem histórica central a estas celebrações.
Segundo a maioria dos estudiosos actuais desta matéria, Jesus Cristo teria sido, muito provavelmente, um profeta apocalíptico. Embora pouco difundida entre os leigos, esta é uma tese que não deve ser considerada ao mesmo nível das teorias pseudo históricas popularizadas pelos romancistas da moda, tratando-se sim de uma visão academicamente alicerçada que teve no erudito alemão Albert Schweitzer o seu proponente de vulto, o qual praticamente relançou, em 1906, toda uma área de estudo histórico com a publicação do clássico “História da investigação da vida de Jesus”. Nos anos que se seguiram, a concepção de Jesus como um judeu apocalíptico passou com distinção a aplicação dos métodos de estudo entretanto desenvolvidos, sendo hoje advogada por algumas das maiores autoridades em estudos religiosos.

Tal como outros profetas apocalípticos do seu tempo, Jesus acreditava que Deus iria provocar, em breve, uma alteração decisiva no mundo. Na sua visão dualista, esta mudança seria marcada pela derrota definitiva das forças do mal, por um juízo final à escala global, e pelo estabelecimento de um reino utópico onde não haveria lugar a miséria e sofrimento: o Reino de Deus. E o que é mais curioso é que esta mudança dramática no curso da história deveria ocorrer ainda durante a vida de alguns dos seus contemporâneos, dando lugar a um reino paradisíaco, por um lado, mas que seria também físico, algures no planeta Terra.
As provas que evidenciam que esta era de facto a mensagem central de Jesus ressaltam das fontes mais antigas como o evangelho de Marcos, composto por volta de 65 d.C., o suposto documento Q, e as cartas de Paulo (50 d.C. em diante). Além disso, tal como Bart Ehrman demonstra em “Jesus, Apocalyptic Prophet of the New Millennium” e no mais recente “Jesus, Interrupted”, esta é uma tese que satisfaz todos os critérios básicos de validação histórica largamente aceites pelos investigadores.
Numa perspectiva estritamente histórica, não é difícil aceitar Jesus como um apocalíptico dado que esta era, no fim de contas, uma visão largamente cultivada no seio do Judaísmo, antes e depois do tempo de Jesus. Jesus iniciou até o seu ministério sendo baptizado por outro profeta apocalíptico: João Baptista. Além disso, há registos de muitos outros profetas que, alegadamente, também fizeram milagres e prometeram igualmente o castigo divino para os malvados e a salvação para os justos, como é o caso de Teudas e do “Egípcio” (ambos citados por Flávio Josefo), que viveram dez a vinte anos depois da execução de Cristo. Assim sendo, Jesus não seria assim um tipo tão singular. Segundo Geza Vermes, a compreensão que teria de si mesmo no plano divino, também não seria distinta da de outros profetas.

Uma vez aceite como muito provável esta visão de Jesus como profeta carismático e apocalíptico, segue-se a conclusão incontornável: Jesus estava enganado! Os anos foram passando e os seus seguidores directos morrendo, sem que as suas previsões da chegada do Reino de Deus se confirmassem.
Perante esta realidade embaraçosa, os escritores cristãos posteriores viram-se na necessidade de adaptar a mensagem de Jesus, dissimulando o conteúdo apocalíptico original.
Como seria de esperar, esta desfiguração da mensagem assume maiores proporções nos evangelhos mais tardios, com João (95 d.C.) a eliminar praticamente todas as referências a uma mensagem apocalíptica, e Tomé (início do sec. II) a assumir mesmo uma posição hostil em relação aos que acreditavam nessa ideia.
A deformação produzida pelo autor de João é tal, que este diz coisas sobre Jesus que não se encontram em nenhum outro livro. Por se tratarem de afirmações que carecem de confirmação independente e que, para além disso, estão imbuídas de uma teologia muito sofisticada (este autor era de uma imaginação ilimitada), não são, na generalidade, tidas em grande conta na reconstituição das palavras de Jesus.
A questão de que Jesus estaria enganado acerca da vinda do Reino começou a ser motivo de aceso debate logo após a sua morte, como se depreende de Paulo (também ele um apocalíptico) em 1 Tessalonicences. Contudo, talvez para apaziguar um pouco os ânimos dos que desesperavam de tanto esperar, 2 Tessalonicences (um dos vários documentos forjados presentes no Novo Testamento) já apresenta uma versão diferente da chegada do Reino. Assim que chegamos à 2ª Carta de Pedro (já em pleno sec. II), a história já sofreu a lavagem completa: o Reino não está atrasado, Deus é que segue um calendário diferente.

Mesmo entre os que rejeitam a divindade de Cristo, é comum pensar-se em Jesus como um grande mestre de moral que pregou valores éticos fundamentais (não originais, diga-se, dado que os mesmos constavam das escrituras judaicas, bem como de fontes pagãs da antiguidade). No entanto, parece que Jesus não propôs estes ensinamentos com o intuito de apontar a melhor maneira de criar um mundo melhor a longo prazo. É que para ele não havia longo prazo! Segundo E. P. Sanders, em “A Verdadeira História de Jesus”, quando na última ceia se dirigiu aos seus discípulos dizendo que só voltaria a beber com eles no Reino vindouro, estaria a referir-se, muito provavelmente, aos dias seguintes, e não a um momento incerto num futuro remoto. Na sua convicção delirante, Deus estava a um passo de intervir decisivamente na história.
A sua motivação para promover as regras de boa conduta que bem conhecemos, não era propriamente a de um pensador humanista que reconhece nestas normas os princípios ideais de relacionamento conducentes a uma sociedade justa, tolerante e estável. Na sua alucinação de profeta, a razão que dava aos seus seguidores para conduzirem a vida segundo tais regras, era porque esta era a única maneira de conseguirem a salvação. Não se tratava de trabalhar para o bem comum como um fim em si. O objectivo era antes evitar a condenação ao tormento eterno. E isto não era entendido em sentido metafórico.
Para Jesus, o Reino de Deus (que não era no céu) estava já ao virar da esquina e a vida terrena não tinha qualquer valor. Não admira pois que se manifestasse a favor da ruptura de laços familiares junto daqueles que o seguiam. O que eram afinal as instituições sociais comparadas com as glórias do Reino?
No fim, à semelhança de outros profetas escatológicos do seu tempo, acabou eliminado pelas autoridades, não por causa de divergências teológicas, mas tão-somente porque constituía uma ameaça potencial para a ordem pública. Tal como as dezenas de profetas que inspirou nos séculos que se seguiram, é muito provável que se tenha despedido deste mundo angustiado e desiludido.

1 comentário:

csa disse...

Há duas coisas neste artigo que me fizeram pensar muito:
1) uma ideia – a de que nenhum dos ensinamentos de Cristo tem valor, devido ao contexto em que surgiram; mas eu creio nos valores a que eles se referem;
2) uma reflexão – Cristo deve ter morrido desesperado; é que eu acho – por já o ter experimentado – que o desespero é uma das coisas mais destruidoras do mundo.